Safo poetou entre o fim do século VII e início do VI a.C. Nasceu na ilha de Lesbos e viveu em Mitilene, sua principal cidade. Dizem muitas coisas sobre ela: que foi uma professora que preparava meninas para o casamento; uma sacerdotisa de Afrodite; ou ainda uma mestra das danças corais. Nunca saberemos. Seus versos de amor a meninas tornaram-se a parte mais conhecida de sua poesia. O tempo a tornou célebre: Platão a considerou a décima Musa. Na Biblioteca de Alexandria, no séc. II a.C., foi canonizada por estudiosos como um dos nove poetas gregos mais importantes – todo aquele que queria ser poeta deveria lê-la. Em Roma, Catulo e Horácio emularam seu estilo. Para este último, sua poesia era sagrada. Hoje, seu nome e a ilha que habitou designam termos da sexualidade humana, traduções a resgatam e relíquias de sua obra poética insistem em ressurgir nas areias do Egito. Safo é imortal.
A lírica de Safo é extremamente melodiosa – os gregos viam em seus ritmos e assonâncias um poder sobrenatural, próprio dos encantamentos. É permeada pelo desejo, pela lembrança, pelos embates de amor e pela dor de sua perda. Mas o que nos restou é fragmentado, lacunar, e mesmo a música que a acompanhava originalmente se perdeu irremediavelmente. Todos os poemas escolhidos para esta breve seleta narram a dor do desejo irrealizável. Ora essa dor assume forma divina, emoldurada num chamado a Afrodite; ora Safo a explica recorrendo ao mundo do mito; ora é o relato de uma amante serena, que recorda, com coração grato, os momentos felizes que viveu com a amada.
Chamo a atenção para o primeiro fragmento abaixo (31): não é exagero dizer que ele inaugurou a lírica ocidental. O poema encanta pelos seus oxímoros: Safo descreve, com extremo autocontrole, os sintomas de seu próprio descontrole amoroso. Este descontrole faz seu próprio corpo e seus sentidos colapsarem e serem alvo de forças tão contraditórias como o fogo e a água. Sua língua se rompe, mas seus versos são, e continuam, muito eloquentes.
Fragmento 31 – “Par dos Deuses…”
Parece aquele igual aos Deuses
ser, o homem que em tua frente
se senta e de perto doce fa-
-lar te escuta atento
e sorrir com desejo — isso tudo eu juro
faz meu coração no peito esvoaçar
pois te olho e tão logo falar
eu já não posso,
mas rompe-se a língua e leve
logo sob a pele lavra um fogo;
com meus olhos nada vejo fremem
meus ouvidos
água de mim se esvai, tremor
toma-me toda; mais verde que relva
estou e bem perto de morrer
pareço eu mesma.
Mas tudo se deve ousar …
Fragmento 1 – “Hino a Afrodite”
Afrodite imortal em flóreo véu fulgente,
filha de Zeus, tecelã de enganos, suplico:
nem com ânsias nem com dores domes
senhora, o meu coração,
mas vem aqui, se alguma vez antes
ouvindo minha voz de longe
me atendeste e a casa do pai deixando
áurea vieste
atrelado o carro: belos te trouxeram
ágeis pardais sobre a terra negra,
num denso turbilhão de asas
cruzando o ar,
e logo chegaram. E tu, venturosa,
sorrindo em teu rosto imortal
perguntaste o que sofri de novo,
porque te invoco,
e o que mais quero que aconteça
em meu coração louco. “Quem vou convencer
de novo ao teu amor? Quem, Safo,
te faz esta injustiça?
Pois bem; se ela foge, logo te perseguirá;
se não aceita os presentes, em troca os dará;
se não te ama, logo te amará,
mesmo que não queira.”
Vem a mim, vem agora, duras angústias
desfaz; e o que cumprir meu coração
anela, cumpre! Vem, tu mesma,
e me ampara nesta luta.
Fragmento 16 – “Ode a Anactória”
Tropas de corcéis, ou infantarias,
ou naus: dizem ser sobre a terra negra
o que há de mais belo. Mas o que eu digo:
é aquilo que se ama.
Todo fácil fazê-lo compreensível
a todos: quem de longe superou
a humana gente em beleza, Helena,
ao ótimo marido
deixou, e foi p’ra Troia navegando.
Até dos filhos e dos caros pais
de todo se esqueceu; mesmo prudente,
a Cípris desviou-a.
Ela o vosso inflexível pensamento
doma de leve, enlanguesce a mente,
e agora faz-me lembrar de Anactória,
que não está aqui:
queria ver seu apaixonante andar
e o cintilar brilhante de seu rosto,
e não carros dos Lídios e guerreiros
em armas e armaduras.
Fragmento 94 – “O Adeus”
Quero morrer, não minto.
Chorando ela me deixava
e aos prantos me disse
“Ai, que tristeza vivemos,
Safo!, juro, não quero deixar-te”.
E esta resposta lhe dei:
“Adeus! Vai, mas tem-me
na lembrança — sabes que cuidei de ti.
Se não, eu quero
lembrar-te…
… que alegrias vivemos:
com guirlandas de violetas
rosas e açafrão
…ficaste ao meu lado
e tantas coroas trancei
em teu colo macio,
feitas de flores…
com o flóreo… perfume
te ungiste
…como rainha
e em leito macio
tenra…
teu desejo saciavas
E não havia um só
templo, um só
…bosque…
onde juntas não estivéssemos….
…a dança
… o som…
Rafael Brunhara é bacharel em Letras: Português (2008) e Grego (2009) pela Universidade de São Paulo. É também mestre (2012) e doutor (2017) em Letras Clássicas pela mesma instituição. Desde 2013, é professor de língua grega e literatura grega clássica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dedica-se sobretudo ao estudo da poesia grega arcaica. É autor de As Elegias de Tirteu (2014) e trabalha, em conjunto com Giuliana Ragusa (USP), em uma antologia de elegias gregas arcaicas em tradução (Ateliê Editorial, no prelo); e em conjunto com Carlos Leonardo Antunes (UFRGS) e José Carlos Baracat Jr (UFRGS) em uma antologia de hinos gregos antigos aos Deuses (Martelo Editorial, no prelo).